sexta-feira, 23 de março de 2012

Divagações na hora do cafezinho: a ilusão de ser Juiz.

Gerivaldo Alves Neiva *
Esta semana resolvi dar uma baixa nos Termos Circunstanciados recebidos da Delegacia de Polícia e designei dezenas de audiências. Ontem, por exemplo, com a ajuda de mais dois conciliadores, realizamos cerca de 40 audiências nestes processos. Teve um pouco de tudo. Na verdade, quase todo o rol dos crimes previstos no artigo 61, da Lei 9.099/95: “Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa”.

Lembre-se que para realizar a audiência, a vítima compareceu antes a uma Delegacia de Polícia para registrar a ocorrência e movimentou toda a máquina administrativa policial. Depois, o processo foi remetido ao Judiciário e, novamente, uma máquina enorme foi acionada para movimentar o processo. No início, um digitador acionou o sistema de informática para registrar o processo e a secretaria, em seguida, adotou uma série de providências para designação da audiência. Em seguida, um oficial de justiça saiu a campo para intimar no mínimo duas pessoas por processo: o autor do fato e a vítima. Em alguns casos, no entanto, existem mais de um autor do fato e mais de uma vítima. Sendo assim, para realizar 40 audiências, por exemplo, pelo menos 60 mandados foram confeccionados para serem cumpridos por oficial de justiça. Isto sem esquecer, é claro, da presença obrigatória de um representante do Ministério Público e um advogado defensor do acusado.

Não fiz ainda um balanço das audiências, mas foram poucas reconciliações, algumas composição do dano civil e outras transações propostas pelo Promotor de Justiça. Neste esquema de muitas audiências, o nível de reconciliação é sempre baixo, pois o tempo é curto para uma conversa mais demorada com as partes litigantes.

O certo, no entanto, é que para o cumprimento das metas exigidas pelo CNJ, o Juiz andou bem: 40 processos a menos no estoque é o que interessa!

Pois bem, no final da tarde, quando finalmente sentei para saborear com calma um cafezinho, pensava em alternativas mais racionais para aquela loucura de pessoas discutindo e em conflito por motivos muitas vezes insignificantes.

De início, pensei que precisava organizar com mais frequência um dia de audiências temáticas como o que acabara de fazer; depois pensei que também seria interessante se fosse designado mais um juiz para auxiliar neste tipo de trabalho; depois pensei que seria mais interessante ainda se houvesse um espaço de mediação daqueles conflitos e não fosse preciso a presença do Estado Juiz para resolvê-los...

Nesta divagação, pensei, por fim, que melhor mesmo seria se não existissem os conflitos pessoais e, em consequência, pessoas envolvidas neles. Infelizmente, os conflitos existem e quero crer que isto faz parte da convivência humana. De outro lado, quero crer também que os conflitos se agravam e se transformam em litígios porque as pessoas, por seu modo de viver, não conseguem resolvê-los e, então, o que era um problema pessoal ganha contornos de judicialidade e tem a solução transferida para o Estado-Polícia-Juiz. Evidente que não estou me referindo aos conflitos sociais, estruturais ou institucionais, que merecem outro tipo de análise.

Agora, infelizmente, não tenho tempo para continuar divagando. Meu cafezinho chegou ao fim e recebo a notícia de que existem vários processos de Termos Circunstanciados aguardando pauta para a audiência. Enquanto isso, certamente, mais e mais pessoas, todos os dias, muitas vezes por falta de um diálogo de poucas palavras, entrarão em conflito com outras pessoas e recorrerão ao Delegado, que vai transformar seu conflito em Termo Circunstanciado e remetê-lo ao Estado-Juiz, como se o Fórum fosse o divã da sociedade em conflito e audiências fossem sessões de psicanálise.

Enquanto isso, parodiando Gilberto Gil, vou vivendo a ilusão de que “ser Juiz bastaria e que o Direito me daria tudo o que eu quisesse ter...” Ou seja, viver em uma sociedade livre, justa e solidária, fundada na cidadania e dignidade da pessoas humana, como está escrito na Constituição de 1988.

Conceição do Coité, 03 de agosto de 2011

* Juiz de Direito (BA), membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD

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