terça-feira, 27 de outubro de 2015

O Novo Código da Mineração: o que você precisa saber para entender o que está em jogo e se posicionar

Por Alessandra Cardoso
do Inesc
O Projeto de Lei que cria um novo Código da Mineração foi enviado pelo governo e está em tramitação na Câmara dos Deputados desde junho de 2013. Agora, dois anos mais tarde, e depois de muita disputa e mudanças, o Projeto está chegando à sua fase terminal na Comissão Especial criada para apreciar a matéria. O relatório está previsto para ser votado no dia 23 de setembro, depois disso ele será submetido ao plenário da Câmara, seguindo depois para o Senado.
Esta nova tentativa de votar o relatório ocorre em um momento difícil da política, economia e sociedade brasileira. Muitos temas da agenda antidemocrática e de retrocessos a direitos tais como a PEC 215, o PL da Terceirização, a PEC da Redução da Maioridade Penal, o Estatuto da Família e a flexibilização do Estatuto do Desarmamento avançam sob o discurso falacioso de promover o saneamento econômico, social e moral.
Uma parte desta agenda de retrocessos, aquela que envolve diretamente interesses econômicos, foi recentemente empacotada por Renan Calheiros no Senado com o nome de Agenda Brasil da qual o Novo Código de Mineração faz parte. Em outras palavras, sob o pretexto de construir saídas para a crise econômica e incentivar o crescimento do setor mineral o Código figura, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, na lista de projetos prioritários. No comando deste processo está o setor mineral, em especial seu segmento internacionalizado cujos interesses estão super-representado no Parlamento e notadamente na Comissão Especial majoritariamente constituída por parlamentares financiados pelas mineradoras.
Enfim, o contexto sinaliza que o Código da Mineração em breve terá um desfecho no Congresso. E como, diferente do que muitos imaginam, este é um tema que afeta diretamente nossas vidas, tentaremos traduzir em três tópicos a complexidade do debate em torno do Novo Código da Mineração com a intenção de mostrar que o que está em jogo é concreto, simples de entender e diz respeito a todos nós.
Acesso às riquezas minerais:
Este é o tema de fundo que está por trás da disputa entre governo e o relator do Código da Mineração, o Deputado Leonardo Quintão, parlamentar mineiro ligado ao setor eassumidamente financiado pelas mineradoras.
A proposta enviada pelo governo tinha uma clara intenção de promover uma maior regulação do setor mineral, em especial por meio da mudança no regime baseado no “direito à prioridade”, que é aquele em que o interessado, pessoa física e jurídica, requer o direito de explorar determinada área de pesquisa ou lavra e, por ter chegado primeiro, tem a prioridade naquela exploração.
Este regime tem como base o interesse exclusivo do setor mineral, sem mediação pública sobre quais recursos deveriam ser prioritariamente explorados, em que condições sociais, ambientais e trabalhistas, e com que intensidade e retorno para a sociedade por meio da apropriação pelo Estado da renda mineral. Desta forma, uma das intenções do governo era mudar o regime baseado na autorização para um regime baseado no princípio da licitação. A proposta do governo, pensada a partir do modelo vigente no setor de energia, traduziria uma maior regulação do acesso aos minérios – que são finitos e, por determinação constitucional, pertencentes à União, e por extensão deveriam ser explorados em benefício da sociedade brasileira, não em benefício quase exclusivo de meia dúzia de transnacionais.
Apesar do Projeto do governo padecer de inúmeros problemas, ele tinha como um ponto forte e positivo a intenção de regular o acesso e exploração do minério com base em alguma coisa que se aproximava do interesse público. Com base na lógica da “participação da União no resultado da lavra” como uma remuneração ofertada pelos concorrentes ao ente licitante, a proposta previa ainda que lavras com alto potencial de extração de riquezas minerais pudessem pagar rendas adicionais nas formas de participação especial, bônus de assinatura e bônus de descoberta.
Este regime proposto como a espinha dorsal no Novo Código, válido tanto para a pesquisa como para a concessão de lavras, causou um descontentamento geral no setor mineral, em especial das grandes mineradoras, super representadas na Comissão Especial. Considerada, excessivamente, intervencionista pelo relator-setor – leia-se menos rentável – ela foi totalmente desconfigurada e esvaziada.
No relatório que está prestes a ser votado, a licitação somente é válida para áreas consideradas “áreas livres”.
Artigo 8° § 2º Somente as áreas livres caracterizadas pela existência de recursos ou reservas minerais poderão ser objeto de concessão precedida de licitação.
Mas o que são estas “áreas livres” na definição dada pelo relatório?
“III – área livre – área que não esteja bloqueada, destinada à licitação ou que não seja vinculada a direito minerário, desde que:  a) não exista sobre a área pedido de autorização de pesquisa, salvo se este estiver sujeito a indeferimento por interferência total;  b) a área não esteja com o relatório dos respectivos trabalhos de pesquisa tempestivamente apresentado e pendente de aprovação; e c) a áreanão esteja com relatório dos respectivos trabalhos de pesquisa aprovado e na vigência do direito de requerer a concessão da lavra, por meio da apresentação do plano de aproveitamento econômico.”
Ou seja, o relatório tira do regime de licitação uma parcela com certeza relevante ,embora ele não tenha dito quanto, de áreas de pesquisa e lavra, esvaziando seu alcance.
Adicionalmente, o relatório aposta na dificuldade operacional do governo em disponibilizar as áreas que sobraram. Para isso, estabelece prazos irrealistas com a intenção óbvia de obrigar que o governo coloque em disponibilidade, para o “bel lucro” do setor, áreas do seu interesse e que ainda estão “livres do controle imediato do setor”. Por exemplo, o relatório estabelece que, se o Poder concedente negar a autorização de pesquisa em uma área em que pretenda realizar a pesquisa mineral para fins de futura licitação, ele terá o prazo de seis meses para iniciar a realização do estudo.
A lógica do relatório é simples: cria regras para fazer de conta que busca mediar e conciliar interesses, quando na realidade esvazia o poder do Estado de regular o acesso pelo setor privado às riquezas minerais.
Mas também não sejamos ingênuos em relação à proposta original do governo. Claro que sua intenção, tal como das mineradoras, era expandir a mineração: um de olho nos lucros e outro de olho nos superávits primários. A diferença era que o governo tentou fazer isto garantindo um maior controle e apropriação pelo Estado da chamada renda mineral. Enfim, o que estava explicitamente em jogo era uma disputa entre o setor e o governo, por menos ou mais regulação, em um contexto de crescimento da produção, da exportação e dos preços, todos puxados pela demanda chinesa. Vale lembrar que, no semestre de envio do Projeto do Governo ao Congresso, os preços do minério de ferro, principal produto da economia mineral brasileira e responsável por 89% das exportações de minérios, ainda estavam elevados, em média U$ 120/tonelada. Hoje, com o arrefecimento da demanda chinesa, a cotação está em pouco mais de U$ 50/tonelada, embora do ponto de vista do setor, sua alta rentabilidade tenha sido bastante preservada com a desvalorização do real.
Neste contexto, a sanha das grandes mineradoras, em sua maioria transnacionais, por lucros extraordinários se reverteu em uma tentativa de desconstruir o projeto enviado pelo governo retirando dele tanto os principais dispositivos que implicavam em maior controle pelo Estado no acesso aos recursos quanto do seu poder de se apropriar da renda mineral.
Direitos socioambientais
A mineração, embora uma atividade circunscrita a áreas relativamente pequenas em função da sua rigidez locacional, tem um elevado impacto social e ambiental. Os principais impactos ambientais estão vinculados ao uso intensivo da água e a contaminação da água e do solo. Casos chocantes como o da contaminação por arsênio na mineração de ouro em Paracatu, ou pelos rejeitos da bauxita emBarcarena, não são raros como talvez alguns imaginem. O impacto social e ambiental afetam não só o meio ambiente, mas toda a vida ao redor. Muitas vezes esse impacto adquire escala regional, como é o caso da contaminação da água e sua restrição em função do uso intensivo tanto na extração do minério quanto no seu transporte por minerodutos.
paracatu
Os casos de impactos, muitos dos quais já viraram processos judiciais, não são exemplos de um passado onde a legislação ambiental era menos exigente. Quem acompanha processos de licenciamento ambiental no Brasil sabe que apesar de termos uma legislação relativamente avançada, na prática eles padecem de inúmeras fragilidades: pouca escuta a comunidades impactadas e grande dificuldade de internalizar no processo de licenciamento ações, recursos e monitoramento efetivo de impactos sociais e suas medidas de mitigação e compensação; baixa capacidade de monitoramento das condicionantes e dos projetos de mitigação acordados no âmbito do licenciamento, que muitas vezes se estendem por décadas e ao longo da vida útil do empreendimento; alta interferência política nas decisões do licenciador, que muitas vezes permite que se leve adiante obras e projetos a despeito de sucessivos descumprimentos das ações previstas, e até de danos irreversíveis ao meio ambiente e às vidas das pessoas afetadas.
Não é aceitável que o Projeto enviado pelo governo, e o relatório apresentado na Comissão Especial, se esquivem de dizer explicitamente e objetivamente quais os compromissos do minerador para com o meio ambiente e as comunidades afetadas. Não resolve como está no relatório, colocar conceitos como “comunidade impactada” e “preocupação com meio ambiente” como “princípios e diretrizes” se isto não vier acompanhado no texto da Lei de Artigos e Parágrafos que digam como e quando esses compromissos com o meio ambiente e as pessoas serão levados em consideração tanto pelo governo como pelo minerador.
Depois de muita conversa, pressão e demanda para mudar este texto puxada pelo Comitê em Defesa dos Territórios Frente à Mineração e pelos trabalhadores da mineração representados pelos seus sindicatos, o Relator ainda insiste em dizer que não há necessidade de prever no Código o cumprimento da legislação ambiental e trabalhista sob o argumento de que ela já existe e é cumprida. Os acidentes de trabalho, os casos assustadores de câncer em comunidades que vivem no entorno da mineração, da contaminação da água e do solo e de destruição das vidas de comunidades inteiras estão aí para mostrar que a legislação é frágil e precisa ser fortalecida, e não enfraquecida como está hoje no relatório preliminar prestes a ser votado.
Apropriação e Repartição da renda mineral
A mudança na base de cálculo da Compensação Financeira pela Exploração do Minério (CFEM) do faturamento líquido para o faturamento bruto é um dos poucos avanços que foi mantido no relatório. Vale dizer que o termo CFEM às vezes engana, pois remete a ideia de se compensar por um estrago causado quando na realidade, com base na nossa Constituição, expressa a parte do bolo da riqueza mineral que é atribuída ao Estado por ser a União detentora do subsolo. Quer dizer, na prática é a parte da riqueza mineral que cabe aos brasileiros, o que poderia também se denominar royalties.
Compreendendo desta forma, a mudança na forma de se calcular esta compensação que antes se dava pelo faturamento líquido (descontando ICMS, PIS, COFINS e despesas de transporte e seguro) para o faturamento bruto amplia a sua arrecadação.
Contudo, no relatório do Deputado Leonardo Quintão o que foi mantido com uma mão foi tirado com a outra. Se na proposta do governo, já tímida e influenciada pela pressão do setor, a CFEM poderia chegar até 4% do faturamento bruto, no relatório apresentado ela fica amarrada a lei aos preços dos minérios cortando, na prática, pela metade do que é hoje. Hoje, o minério de ferro paga 2% do faturamento líquido. Na proposta do relator-setor foi criado um sistema de banda que varia de 1% a 4% a depender da cotação internacional dos minérios. Na prática, ele pagaria na cotação de hoje, que especialistas apostam que se manterá por muito tempo, apenas 1%.
Ou seja, se o ganho com a mudança da base de cálculo representa algo em torno de 10 a 20%, a perda de 2% para 1% representa 50%. A quais interesses esta proposta atende?
Não é demais lembrar que o Brasil tem um dos mais baixos royalties entre os principais países produtores de minérios. Além disto, não se sabe no Brasil qual a tributação efetiva da mineração em especial das grandes mineradoras que têm um sem número de isenções. Para citar algumas: isenção de ICMS para exportação (Lei Kandir); 100% de isenção de ICMS para circulação interna no estado do Pará; isenção de 75% do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica na Amazônia (concedido pela Sudam).
Dividindo a CFEM para ganhar apoio político de prefeitos
Mais uma vez, para fazer de conta que atende a amplos interesses, o Relator da matéria apresentou uma mudança na forma de partição da CFEM na tentativa de ampliar aliados para a defesa e aprovação do seu relatório. A solução proposta, bem ao estilo mineiro (para não contrariar demais os interesses estabelecidos) é tirar 5% das prefeituras, 3% dos estados e 2% da União para compor uma espécie de Fundo com 10% da CFEM para ser distribuído entre centenas de municípios cujas populações têm suas vidas impactadas pela mineração.
Esta solução, embora tenha algum mérito por reconhecer o impacto social e ambiental da cadeia de extração e transporte dos minérios, claramente é alegórica e paliativa. Em primeiro lugar porque os valores são irrisórios. Para termos uma ideia, se todo o minério de ferro de Carajás fosse transportado pela Estrada de Ferro de Carajás que corta e impacta 23 municípios do Maranhão, e mais dois do Pará (além de Parauapebas e Marabá), teríamos a bagatela de R$ 1,5 milhão por município impactado. Isto, considerando os valores pagos pela CFEM em 2014 pela extração do minério de ferro de Carajás. Com a redução da CFEM de 2% para 1% como prevê o relatório e mesmo considerando a mudança na base de cálculo, estes valores seriam ainda menores.
Este valor representa hoje, por exemplo, 6,4% do que a população destes municípios recebeu de Bolsa Família (R$233 milhões) ou 7,52% de transferências da União para Educação (R$ 270,95 milhões) ou 4,21% das transferências pra saúde (R$ 151,86). Que diferença irá fazer isto na vida das comunidades impactadas?
Além disto, a dificuldade de operacionalização da divisão deste Fundo será gritante. Caberá a Agência Nacional da Mineração (a ser criada) o desafio de regulamentar como será a divisão destes 10% com base no grau de impacto da mineração em cada município impactado.
Mineração acima de todos os interesses nacionais, livre de perturbações, nas Unidades de Conservação (e na lua)
Entre as muitas barbaridades presentes no relatório estão:
1) A tentativa de alçar a mineração leia-se os interesses das mineradoras, acima de todos os demais interesses nacionais: “Art. 119. A criação de qualquer atividade que tenha potencial de criar impedimento à atividade de mineração depende de prévia anuência da ANM”.
2) A tentativa de reforçar a criminalização do direito legítimo dos trabalhadores e dos atingidos pela mineração de protestarem e pressionarem o setor e o governo para que a lei seja cumprida e seus direitos sejam garantidos: Artigo 2°; inciso VIII: é papel do poder público “proteger a atividade mineral regular contra embaraços e perturbações”.
3) Permitir a mineração em Unidades de Conservação. O Artigo 136 do relatório estabelece que “Nas unidades de conservação de uso sustentável é permitida a exploração de recursos minerais, incluídos dentre seus objetivos de manejo a pesquisa, a lavra, o beneficiamento, o transporte e a comercialização de recursos minerais, desde que atendido o disposto no art. 10º da Lei nº 6.938, de 21 de agosto de 1981, cabendo o licenciamento ambiental ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA”. Esta medida, absurda, representa uma boa síntese da disposição do relator da matéria em garantir a qualquer custo e de forma inconsequente à ampliação da fronteira mineral no Brasil.
Este relatório tem condições de ser votado dia 23 de Setembro?
O relator deputado Leonardo Quintão (PMDB/MG), a despeito das críticas do Comitê e de vários outros deputados que compõem a Comissão Especial e da posição do governo de que este texto apresentado é ruim e não tem condições de ser votado, promete realizar esta votação no dia 23 de Setembro, e para isto conta com o apoio do deputado Gabriel Guimarães (PT/MG) como presidente da Comissão Especial.
Nós, do Inesc, em conjunto com centenas de organizações e movimentos sociais que compõem o Comitê em Defesa dos Territórios Frente à Mineração dizemos que NÃO!
Esse relatório representa um retrocesso histórico e trará prejuízos ainda maiores aos municípios e comunidades já atingidas pela mineração e a toda sociedade brasileira.
Fonte: Ibase

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